Muitos querem subverter aquilo que se convencionou chamar de "ordem vigente". E todos os que tentaram falharam... Eu não quero subverter a ordem... eu quero possuí-la, domá-la, domesticá-la, pervertê-la! DEFLORÁ-LA!!
fuck the order...
Neste último fim de semana, aconteceu em São Paulo a parada do orgulho LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transsexuais), a maior do mundo, popular e vulgarmente conhecida como "parada gay". Como sempre, muito bonita, muito colorida, lotada de pessoas, um evento ímpar de socialização em um momento no qual os laços de solidariedade estão praticamente desfeitos. Acho extremamente válida essa mobilização e, mais do que isso, significante, pois demonstra o adiantado da hora para a nossa Cultura não apenas aceitar, mas "culturalizar" a existência de pessoas que optam, de livre e espontanea vontade, por uma sexualidade que distoa do hétero (que nada mais é do que a personificação de uma contradição).
MAS...
Eu gostaria de chamar a atenção para o seguinte: o movimento social encabeçado pelos homossexuais que culminou na parada do orgulho LGBT perdeu seu lastro social. Ao mesmo tempo que o movimento atingiu proporções exponenciais (só a parada LGBT contou com 4 milhões de pessoas, segundo estimativas oficiais da prefeitura de São Paulo), perdeu, por outro lado, sua organicidade e seriedade, características estas, a meu ver, essenciais para a coesão de qualquer movimento social.
O que vem ocorrendo nos últimos anos, em relação a parada do orgulho LGBT, não é um evento que tem a finalidade de chamar a atenção da sociedade para a questão da aceitação de opções sexuais distintas, mas um momento comum de festejos e bebedeira, como o é o carnaval, por exemplo. Na verdade, a parada do orgulho LGBT já foi cooptada pelo sistema e se tornou um trampolim político, um momento utilizado para a propagação, na surdina (por incrível que pareça), dos mesmos ideais tradicionais que permeiam os meandros da nossa sociedade e contra os quais o movimento deveria lutar.
Não quero ser injusto. Eu sei que muitas pessoas estavam lá com a finalidade de dar continuidade na luta contra o preconceito, esse câncer que infecta todo o sistema. Mas, me desculpem e com todo respeito, a Avenida Paulista não é lugar de fazer uma pseudo-manifestação em forma de festinha. O lugar onde o movimento LGBT deve buscar sua autonomia e o expurgo do preconceito é o Congresso Nacional, com representações políticas que abracem de verdade a causa e a façam entrar goela abaixo de um Bonsonaro da vida por maioria política e não por compaixão (em termos democráticos, maioria política significa LEI; e LEI significa o seguinte para a sociedade: ou você aceita ou você aceita).
Então, gente, por favor: parem de ficar brincando de movimento social e se organizem da maneira como deve ser, ou seja, com representações políticas organizadas. Por mais que não queiramos aceitar, a política faz parte de nossa vida; se nos abstemos de assumir uma postura ou de colocar nossa opinião, ou se preferimos aproveitar a festa como está ao invés de melhorá-la, não tenham dúvida de que alguém fará isso por nós. A chave de qualquer mudança, e a história está aí par provar isso, consiste em, basicamente, dois caminhos que devem, necessariamente, ser trilhados ao mesmo tempo: 1) educação; 2) participação política. Os benefícios ou os malefícios dessa mudança são desdobramentos da maneira como esses dois sustentáculos do change são construídos.
Hoje, quero falar um pouco de algo particular que me chama a atenção no dia-a-dia: o paradoxo entre teoria e prática. Não vou ser breve no que vou escrever porque aqui, neste blog, todos tem a liberdade de ler ou não. Eu escrevo pra caralho mesmo e quem não gosta do meu estilo que busque outras formas de leitura que não lhe firam a visão nem a alma. Não sou eclético e nem tenho política de cotas, portanto, não preciso agradar nem desagradar a ninguém. O que escrevo é para aqueles que tem a coragem de fazer o antigo exercício de "parar - ler - refletir", em um país onde o hábito da leitura é motivo de piada em programas de televisão.
Outro dia vieram reclamar comigo de que eu não cito autores nos meus escritos, que "a veracidade das minhas concepções é duvidosa". Sabe o que eu respondi a essa pessoa? VAI TOMAR NO SEU CU E NÃO TORRE A MINHA PACIÊNCIA! Mas isso me chamou a atenção. Tem uma coisa muito interessante na afirmação que fizeram: a questão do crédito. Ou seja, só tem crédito quem cita autores, obras e afins, como se uma obra se fizesse exclusivamente por quem a escreveu, como se o fato de um autor ser doutor honoris causa ou ter feito doutorado na europa seja, por si, o suficiente para conferir veracidade a uma obra.
A hipocrisia que reina entre teoria e prática é tamanha, que é algo universalmente aceito. Depois de seis anos de graduação, tendo contato com toda essa corja que se convencionou chamar de "cientistas", eu percebo que teoria e prática são criações para manutenção de poder. Nesse meu trajeto, eu passei milhares de horas estudando como reconhecer e estudar relações de dominação. Eu sou uma espécie de "projetista" das Ciências Sociais: sei reconhecer relações sociais, sei desmontá-las e estudar as partes separadamente; se houver inconsistências, sei montar de uma forma que sejam corrigidas; sei, enfim, o que, como e porque fazer para mudar alguma coisa nesta merda de mundo... para, no final de tudo, eu ter que sair da universidade e fazer exatamente da maneira que eu sei que não deve ser feito.
Sabem por quê? Porque tudo o que eu aprendi dentro da sala de aula da universidade foi por intermédio desses "cientistas" que não se acham, em hipótese alguma, obrigados a viver de acordo com as convicções que apresentam em sala de aula. Certa vez, me disse um professor que a sua função dentro da sala de aula de uma universidade é "defender o autor até o fim". Estávamos falando de Maquiavel naquela aula. Um autor mal amado, amargurado, despedido da função farta e voluptosa do serviço público; um homem que disse que no universo da política vale tudo: mentir, dissimular, roubar, matar para que "o príncipe mantenha-se no poder". E um professor de universidade, que teve a mesma formação que eu tive, portanto, que aprendeu as mesmas coisas que eu aprendi e muito mais durante seus mestrado e doutorado, vira pra mim e diz que tem que defender um autor como Maquiavel, que fala abertamente o que acontece no universo da política, que mostrou no século XVI o que os políticos de todos os tempos passam o dia a fazer dentro de seus gabinetes. Um autor que, mais do que expor as entranhas da política, concorda e reafirma que deve ser feita assim mesmo. Aí, o mais legal: minha prima, doutorada há pouco tempo, me solta o seguinte: " a discussão sobre a neutralidade axiológica está encerrada no meio acadêmico..." E eu, na minha humildade de graduando, viro pra ela e repasso: "em qual planeta? Porque aqui, na Terra, o distanciamento do objeto é cobrado dos cientistas nas suas dissertações e descobertas e, muitas vezes, define o aceite da comunidade científica".
No primeiro ano de universidade, eu discordei de Foucault. Imagine uma cena em que toda a sala olha pra você, como se você tivesse peidado e todos soubessem que foi você. Foi o que aconteceu comigo. Eu ergui a minha mão e disse: professor, eu discordo de Foucault nessa passagem. Ele me olhou com uma cara que dizia a mim claramente: quem é você para discordar de Foucault? Eu não sou ninguém. Mas e Foucault é o quê? Um pensador? Um pensador que fala, fala, fala e não diz nada? Que porra de definição de pensador é essa? De que adianta pensar se não se age como se pensa? Pra que serve o conhecimento se ele não é posto em prática? PRA NADA!
Veja o estrago que interpretações arbitrárias da obra de Descartes provocaram na história do Ocidente! Procuramos respostas para tudo na ciência... Eu detesto estragar os devaneios das pessoas, mas para quem não sabe, a ciência é filha legítima da religião, que por sua vez, é filha legítima da magia. Estudiosos dos séculos XVIII e XIX tentaram, de todas as maneiras, repudiar essa verdade, estabelecendo a noção de desenvolvimento e primitividade. Desenvolvimento? QUE desenvolvimento? Estamos em pleno século XXI e ainda nos matamos por causa de um liquido preto e viscoso que sai de dentro da terra; nos matamos por muito menos do que isso: por causa de poeira ou de um monte de plantas... a ciência cartesiana diz que tudo isso é legítimo; eu digo que tudo isso é uma grande e estúpida hipocrisia. Quer ver quem realmente são os seres humanos? Dê folga a todos os lixeiros por um mês; ou prenda os bombeiros por atentado ao patrimônio público, como fez o Rio de Janeiro. Então veremos o quanto de inteligência está realmente contida na ciência e para o que realmente ela serve.
Muitos dizem que "a ciência cartesiana foi derrubada". É mesmo? Bem, então porque Descartes ainda é ensinado nas escolas? Por que as crianças aprendem desde cedo a usar apenas duas das três dimensões que nossos olhos conseguem alcançar? Aliás... você que está lendo este post, por favor me responda: você aprendeu na escola quais são as três dimensões de que os professores de matemática e física tanto nos falam durante os longos anos de estudo? Se não, eu tenho certeza de uma coisa: você, certamente, aprendeu logarítimo, fazer equação do 1° ao 1000° graus, raíz quadrada, trigonometria, balanceamento de enquações químicas; vetores... e vocês professores de humanas e biológicas não pensem que eu me esqueci de vocês: análise sintática; história da américa; geologia; leis de mendel; angiospermas - giminospermas; BLA BLA BLA...
Aprendi tudo isso e sabe qual foi a primeira pergunta que o entrevistador me fez no meu primeiro emprego? "Você tem idéia do que você vai fazer aqui?"... detalhe: fui entrevistado para uma vaga de menor aprendiz... APRENDIZ, ou seja, alguém que vai APRENDER, e sim, tive de fazer uma entrevista mesmo assim, para o imbecil me perguntar "você tem idéia do que vai fazer aqui".
Na escola, parecia um lindo sonho no País das Maravilhas o mercado de trabalho. Nunca ninguém me disse que eu iria me tornar rico e poderoso, desde que estivesse disposto a abdicar de tudo que acredito, fazer conchavos, destruir vidas de pessoas inocentes, roubar e, até mesmo, em alguns casos, matar. Nunca me disseram que meu chefe iria me promover desde que eu fizesse tudo o que ele mandasse sem questionar, ouvisse ele me humilhar calado, deixasse de viver com minha família para viver em prol da empresa e, além de tudo, que eu "vestisse a camisa da empresa"... QUE PORRA SIGNIFICA ISSO? Ninguém me disse na escola, que mesmo que eu me tornasse o maior cientista de todos os tempos minhas descobertas só teriam crédito se eu aceitasse que um bando de "marmanjo" mal amados e que não comem ninguém criticassem minha obra e me dissessem que não sou nada comparado a eles.
E depois disso tudo, vivem tentando me convencer de que eu tenho que me acostumar porque a vida é assim mesmo. Mas quando eu tive que estudar a noite e trabalhar de madrugada se eu quisesse parar de me foder na linha de produção de uma fábrica, nenhum desses que diziam que eu deveria aceitar estavam comigo. Onde estavam os professores, os amigos, e até os familiares que diziam: "faça tudo direitinho que você será recompensado"?! Acho que se lembraram de que tinham se esquecido da parte do "desde que..." e se esconderam enquanto eu comia o pão em que o diabo tinha gozado dentro. Não sei porque, eu vivia ouvindo risos que não sabia de onde vinham...
Essa história de bons modos, de fazer direito, de obedecer, de ter sonhos, de ser normal (seja lá que porra seja isso), de aprender a conviver, de "faça tudo o que te disserem", de ser creditado por alguma coisa, pra mim não passa de uma piada de mal gosto. O interessante, é que essa mesma piada é contada pra todo mundo e ninguém ri, mas vivem passando para as gerações que chegam. Faça o que digo e não o que faço..."eu matei minha mãe, mas você deve respeitar a sua"; "eu estuprei a irmã do vizinho, mas se você chegar perto da minha..."; "eu humilho as pessoas, mas não se atreva a me humilhar"... Afinal de contas, o que significa tudo isso? Significa que eu não sei porque as coisas são assim, mas de uma coisa eu sei: vai ter volta.
Desculpem a demora em postar esta réplica ao post do Cido. Nossa controvérsia é sensacional e espero que apreciem nossa discussão, sugerindo que visitem o blog dele O Caminho Recusado.
1) Bem, como eu e o Cido já expusemos mais do que o suficiente a respeito da obra do cineasta em questão, vou me deter sobre o ponto exato em que nosso pensamento parece se chocar: violência e perversidade. Devo acrescentar que jamais vi um ser humano na face desta Terra, nesses meus vinte e poucos anos de vida, que definisse o que é a vingança de uma maneira tão lírica como o Cido. Claro que uma definição dessas só poderia vir de um escorpiano (sim, eles entendem de vingança mais do que os deuses criadores da vingança kkkkkkkkk!).
b) Levado, talvez, por um ato falho ou quem sabe uma paixão descontrolada por tornar palavra escrita o seu pensamento sobre a obra desse cineasta extraordinário (claro, inspirado por mim), Cido viciou sua mente no nome do meu blog (Perversão!) e o confundiu com o termo que realmente mencionei na minha análise anterior: a perversidade. Eu não analiso a perversão porque isso é trabalho da psicanálise. O que analiso é a perversidade humana, neste caso definida como um desvio psíquico causado em maior ou menor grau pelo sentimento de incompatibilidade com os ditames sociais (FOUCAULT: História da Sexualidade). A perspectiva sócio-histórica que adotei demonstra que a perversão é um fator e a perversidade uma ação ou um conjunto delas que converge para um desvio de ordem sexual, traduzido em sadismos, masoquismos, exibicionismo, voyeurismo etc. Na análise que faço, portanto, não me interessa o que levou determinada personagem a fazer o que fez (perversão), mas sim o que ela fez (perversidade). De fato, Tarantino não mergulha em análises muito aprofundadas sobre o universo interior de suas personagens no desenrolar das suas tramas. Ele deixa esse conhecimento em suspenso, expondo sim o ambiente em que ocorrem as conseqüências desse conflito causado pelo choque entre o universo interior e obscuro das personagens com o exterior previamente estipulado por alguma força inominável. Esta não determina as personagens em si, mas suas ações, que é o que me importa.
III) Discordando, ainda, do Cido, a violência, na obra tarantinesca, é um mecanismo que consiste na forma mais elementar de quebrar valores tradicionais. A minha leitura sobre a violência na obra do cineasta é que é uma ferramenta eficiente quando utilizada da maneira que melhor se aplica a uma dada situação. Como saber que maneira é essa? Não há como saber. Os personagens dele simplesmente sabem. A violência faz parte de suas vidas constituindo, enfim, seu cotidiano.
Capítulo V: o problema da vingança – parte I
Entendo que a vingança é análoga à reação química que produz o fogo: é necessária a conjugação de uma série de fatores e elementos para que ela ocorra; na falta de qualquer um deles, a reação não funciona. Uma vez desencadeada, torna-se uma reação em cadeia: necessita ser alimentada para continuar a existir e sua fome é insaciável, se expandindo de maneira a ficar cada vez maior até que se perca o controle, pois depende fortemente do acaso para se concretizar de forma eficiente. Se há controle, portanto, não há vingança, mas duas opções: justiça ou perversidade. Ambas se valem da violência como instrumento de ação. Em toda a obra tarantinesca conhecida, me parece que o filme que mais se aproxima de uma leitura sobre a vingança é Kill Bill e é sobre ele que vou me deter para analisar o problema da vingança.
Lembremo-nos das cenas em que Kiddo marca os nomes no caderninho; depois vai até Hanso; depois vai ao encontro de cada um... tudo isso dá certo demais... ela tem um controle extremo sobre o que vai fazer; ela tem calma para fazer. E mais: ela tem controle de como fazer; ela CALCULA friamente todos os seus movimentos... mais adiante, entenderemos porque isso tem mais de perversidade do que de vingança.
O ato de Kiddo se pretende vingativo e segue, até certo ponto, os moldes de vingança já debatidos pela Filosofia, especialmente na corrente da Ética. Entretanto, esta enfatiza que a vingança tem por objetivo ser uma reação ao ato desencadeador igualmente poderosa e causar como resposta um dano que reduza o ente causador a uma condição que impeça uma contra-vingança, o que não necessariamente implica a sua morte. E este é o problema da vingança em Kill Bill: Bellatrix Kiddo sobreviveu ao Massacre de El Paso, mas matou TODOS aqueles que a humilharam. O próprio Bill evitou que ela fosse morta por Elle no hospital, pois ele já havia se vingado pelo que considerou uma traição e sua cólera fora aplacada. Ele queria matá-la, é verdade... mas como falhou uma vez (e aqui temos a ação do acaso), percebeu que não seria necessária uma segunda tentativa. Ela acabaria chegando até ele de qualquer maneira. E por que ele tinha essa certeza? Porque conhecia sua amada-amante pupila.
A análise que Bill fez de Kiddo no final da saga, se aplica a todos os integrantes das Víboras, inclusive ao próprio Bill, e ele, melhor do que ninguém, sabia disso. Por isso era quem era e estava no lugar em que estava. Uma análise daquelas só pode ser feita por alguém que conhece em pormenor aquilo que sabe fazer de melhor e, mais do que isso, sabe reconhecer suas próprias características nos demais.
Um elemento fundamental para a vingança: a regra de ouro do ego. Como a vingança é um ato que ocorre sempre no perímetro abarcado pelo ego e é sempre despertada pela interiorização de algum acontecimento, entendo que seja desencadeada por processos, antes de tudo, a ele exteriores. Sendo o corpo a primeira instância do ego é ele que sofre o primeiro impacto. Por outro lado, o corpo é a última instância da perversão, pois os impulsos perversos vêem do id, portanto, do interior para o exterior. Mas é através do corpo que ela se materializa em perversidade. Disso decorre que toda figura de vingador se encontra em grande conflito consigo mesma, o que a conduz, no mais das vezes, à perda do sentido da sua missão ou busca, como foi o caso de Kiddo: passou tanto tempo se deliciando em acabar com os outros que quando chegou finalmente em Bill ele já estava mais do que preparado para ela; Kiddo parecia uma criancinha mimada diante do pai que a repreende. Ela só venceu porque ele se deixou vencer. Isso não foi vingança... primeiro foi treinamento e depois se tornou um fiasco (mas foi lindo de ver rs!)!
Capítulo VI: perversidade
A perversidade, ao contrário da vingança, não parte de pressuposto algum. Ela não necessita de uma combinação de elementos e nem leva a uma reação em cadeia. Geralmente, os perversos possuem um autocontrole fora do comum, como o Coronel “SS” Hans Landa, o “amigo que todo mundo queria ter” (eu não!): carismático, simpático, amável, elegante, inteligente, possuidor de uma cultura que beira a erudição... todas máscaras que escondem o mais terrível dos demônios. E aqui voltamos ao ponto do controle excessivo que Kiddo tinha sobre seu plano, que mencionei anteriormente. A vingança não é um sentimento, mas um impulso de satisfação egocêntrica desencadeado por processos alheios ao corpo. O vingador, por outro lado, tem sempre a opção do perdão ao seu alcance que é, também, uma forma de vingança, porém despida da violência. A perversidade, não. Ao contrário, ela é um sentimento e uma necessidade que acompanham o ser humano desde tenra idade, necessitando de máscaras e esconderijos; necessitando ser controlada se quisermos conviver em grupo. MAS... Assassinos frios e cruéis como Kiddo e Bill não querem viver em outro grupo que não o seu próprio grupo. Tudo o que existe fora desse grupo, para eles, não existe.
A perversidade se conjuga com as mais variadas necessidades humanas: ela está presente quando acordamos, quando nos encontramos com nossos amigos, quando estamos com nossos entes queridos, quando vamos à igreja, quando pagamos nossos impostos, quando vamos trabalhar, quando discutimos sobre a obra de algum cineasta maluco. A perversidade faz parte da constituição humana porque vem do id e o id faz parte da constituição humana: sempre estará lá à espreita, queiramos ou não. Diferente da vingança que integra temporariamente uma parte da mente humana e depois parte para nunca mais voltar ou voltar quando necessário. Assim, a vingança nada mais é do que uma convenção social extremamente maleável. Vejamos alguns exemplos:
Landa se arrependeu dos seus atos sujos? E o sargento Werner por acaso pediu clemência antes de ter seu esqueleto estilhaçado pelo Bear Jew? Hitler matava judeus por diversão; Stiglitz matava nazis por diversão; Bear Jew matava nazis por diversão (2 a 0 para os Bastardos rsrs!)... será que os atos do Stiglitz e do Bear Jew, motivados por um falso senso de justiça, os fizeram menos perversos do que Hitler? Os mrs. Blonde e White: que motivos tinham para torturar um policial cujo destino já estava selado, mesmo sabendo que ele não sabia de nada? O Bear Jew: acertar os “nazis” com um bastão de beisebol até a morte... o que ele ganhava com isso senão prazer pessoal com os aplausos da companhia? Isso é perversidade, não pura e simples violência ou vingança. Os seres humanos são perversos por natureza, contra o que as únicas e débeis barreiras existentes são meia dúzia convenções sociais que caem por terra diante da força da violência. E é apenas isso que, a meu ver, a violência aponta na obra tarantinesca.
Capítulo VII: a verdadeira vingança
A vingança não está acima de sentimentos como honra ou nobreza de espírito; a perversidade está. Até mesmo a Cotton Mouth admitiu seu erro, pediu perdão... Kiddo aceitou, mas a matou mesmo assim só para constar. Se fosse apenas vingança ela teria parado naquele momento. Mas ela continuou.
Muito bem.. Querem um exemplo de vingança de verdadinha em Kill Bill que ninguém percebeu? O Larry! Como eu adoro o filho da puta do Larry! Ele transformou Buddy em PÓ na mais brilhante cena de um chefe comendo o rabo de um subalterno que eu já vi na minha vida! Ele não apenas descontou a raiva dos outros atrasos, como humilhou Buddy de tal modo que ele pareceu esquecer quem era (assassino frio e cruel, lembram?). Além do Larry ter dito tudo aquilo na frente da puta que cheirava cocaína com uma nota de 100, o mandou desentupir uma privada, reduzindo Buddy à merda. Isso sim foi uma vingança (vide capítulo V, 3º parágrafo).
Capítulo VIII – Touché (ou a assim chamada “Gotcha!”)
Apesar da forte presença da violência e do tema da vingança (uma vingança discutível, diga-se de passagem, como é toda vingança e por isso estamos aqui rs!) no todo da obra tarantinesca, para mim elas ainda se configuram como elementos que conferem organicidade ao enredo, mas não são analisadas em profundidade pelo diretor: são desdobramentos de acontecimentos muito superiores e que na maioria das vezes não estão presentes na película.
É possível ver vingança em Cães de Aluguel? Até é, mas não me lembro de ninguém precisando se vingar de ninguém... só um monte de ladrões que se reuniram pelo PRAZER que tinham em roubar e, no meio deles, um policial “testa de ferro” para pegá-los se sobrevivesse. Vide o requinte com que planejaram o assalto... a violência foi desdobramento disso. Em Jacky Brown tem vingança? Em qual parte? Mas tem violência como desdobramento da situação de sinuca de bico em que ela se encontrava. E em Pulp Fiction? Tem MUITA violência, mas... cadê a vingança? A tal da massagem no pé remete a impulsos sexuais, portanto satisfação de prazer, portanto perversão, com uma pitada de ciúmes do Marcellos Wallace e da boca grande do “bando de costureiras”, tornou-se o quê? Perversidade! Violência e vingança não são nada sem um ato desencadeador, sem algo que leve até elas, porque ambas dependem, antes de tudo, de uma situação, de uma conjugação de fatores. Por isso Tarantino banaliza a violência nos seus filmes, como uma ação rotineira que as personagens nem se dão conta que estão praticando. PARA MIM, isso é um retrato fiel do ser humano despido de qualquer caráter, qualquer pudor, em outras palavras, um ser humano perverso e não simplesmente violento.
Em Pulp Fiction, o que salta à vista é justamente essa violência pura e banal, sem pudor, despida de qualquer traje, porque é assim que ela realmente é: perversa. Zed queria se vingar do Wallace? Até onde se sabe, não. Zed simplesmente queria satisfazer sua necessidade de prazer através da violação sexual e tanto melhor se satisfizesse de brinde a sua ira racista, ou seja, uma busca irrestrita por prazer que ele não controlava ou não queria controlar (perversidade). Wallace depois quis matá-lo, mas não por vingança, e sim por ser o ato de matar o que lhe daria grande prazer e não antes de fazer o que lhe dava ainda mais prazer: torturar (perversidade).
Ou talvez, Wallace teve aquela reação porque Zed mostrou a ele que mesmo o cu de um chefão do crime organizado é apenas um cu, nada além disso; e até mesmo o cu de um gangster frio e cruel necessita de ajuda para se salvar de algumas situações, ainda que seja a ajuda de um inimigo. Tarantino, em uma análise brilhante, a meu ver, não da vingança nem da violência, mas da Justiça, demonstrou nessa cena como um ser humano que pensa ser alguma coisa por ter dinheiro e capangas de plantão, não é nada diante de alguém que pouco se importa com isso. Porque até o status de chefão do crime organizado em Los Angeles não é nada além de um papel social. E sabem de uma coisa sobre papéis sociais? Eles só são reconhecidos até o ponto em que determinadas camadas e locais específicos da sociedade os reconhecem. Em um porão mal iluminado nos fundos de uma loja de velharias, em algum ponto de uma metrópole global como Los Angeles, amigo... papéis sociais simplesmente não existem. Quem estuprou, portanto, Wallace não foi o Zed, nem a violência, nem a vingança... foi a Justiça.
Capítulo IX – Apologia
Eu detesto reducionismos. Uma obra como a de Quentin Tarantino é muito mais do que violência, vingança, perversidade etc. Os foucaultianos que se explodam: eu considero Tarantino um instaurador de discursividade, um filósofo do cinema! Ele lida com questões fundamentais concernentes não a um ou outro grupo de pessoas, mas à própria categoria de ser humano em diversas dimensões. Assistir um filme de Quentin Tarantino é mergulhar em si mesmo. Ele transforma a grande tela cinematográfica em um espelho universal no qual vemos a nós mesmos refletidos: nossa fraqueza, nossa covardia, nossa mesquinhez... Mas vemos também nossa capacidade de transformação, esse dom que nos aproxima da categoria divina, essa marca que, mais do que a racionalidade, nos diferencia da Natureza e, ao mesmo tempo, nos torna iguais a ela (pena que ainda não nos demos conta disso).
Devemos apenas atentar para o fato de que essa capacidade de transformação, e vejo que esse é o principal diferencial do cineasta ao desenvolver suas tramas, é uma massa informe. Damos a ela as características que quisermos. Mas, que não nos esqueçamos de três coisas:
1) da existência de seres e forças alheios a nossa compreensão agindo neste mundo;
2) da lei da causalidade;
3) da cena do Hitler dizendo NEIN! NEIN! NEIN! NEIN! NEIN!